terça-feira, 22 de novembro de 2016

"Made in Sporting": a reportagem do New York Times sobre a formação do Sporting

Vale a pena ler esta deliciosa reportagem de Rory Smith (@RorySmith) para o New York Times sobre a formação do Sporting. O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui (LINK).



"Made in Sporting: a Academia do clube de Lisboa mostra como se destaca


Jovens jogadores de futebol treinam na produtiva Academia do Sporting em Alcochete, Portugal

Segundo a forma como a história é contada no Sporting, nem sequer foi preciso ver Cristiano Ronaldo jogar para perceberem que ele era especial. Foi suficiente vê-lo com a bola nos pés, e à demonstração do magistral controlo em cada toque dado pelo sossegado e lingrinhas rapaz de 12 anos.

Basicamente, toda a gente do Sporting conhece a história, que hoje faz parte do folclore do clube; basicamente, toda a gente conta a história da mesma forma, com uma cadência e um elenco de personagens que parece saído do Natal. Uma história em que até entram três homens sábios.

Em 1997, o presidente de um núcleo do Sporting na ilha da Madeira entrou em contacto com Aurélio Pereira, o diretor de recrutamento de jovens do clube de Lisboa. Havia, dizia ele, um rapaz prodigiosamente talentoso nas equipas jovens do Nacional, um dos três clubes profissionais da capital da ilha, Funchal.

Pereira, astuto e bigodudo, rapidamente enviou um olheiro para avaliar o que lhe tinham transmitido. O prodígio em questão iria participar num torneio pelo Nacional. Quando o emissário do Sporting chegou, no entanto, descobriu que o seu alvo não iria ser utilizado. Encontrou-o, ao invés, fora de campo, junto à linha lateral, sozinho com uma bola, absorvido a praticar o seu repertório de toques e fintas. Observou-o durante um bocado.

Ele não sabia na altura, claro, que Ronaldo viria a tornar-se num dos melhores jogadores da históra, vencedor de três Bolas de Ouro, vencedor de três Ligas dos Campeões, campeão da Europa por Portugal e, durante algum tempo, o jogador mais caro do mundo. Mas sabia o suficiente. O olheiro avisou Pereira e disse-lhe para convidar Ronaldo a deslocar-se imediatamente a Lisboa para um teste.

Quase 20 anos após a chegada de Ronaldo - e 13 após a sua partida -, o Sporting continua tremendamente orgulhoso de tudo o que Ronaldo alcançou. A sua imagem está estampada num mural junto aos balneários, no interior do Estádio José Alvalade, e os adeptos do clube irão proporcionar-lhe uma generosa receção quando ele entrar em campo pelo Real Madrid, contra o Sporting, na Liga dos Campeões, na terça-feira. Ele não terá quaisquer dúvidas sobre o quanto significa para eles.

Da esquerda para a direita, Luís Martins, o coordenador técnico de Alcochete; Aurélio Pereira, o diretor de recrutamento do Sporting; e Virgílio Lopes, o diretor de Academia, regularmente recebem visitantes interessados no segredo para produzir jogadores de topo.


A uma hora de distância, no gabinete de Aurélio Pereira na Academia de Alcochete, a reverência é semelhante. As paredes estão cheias de imagens de Ronaldo, e duas camisolas assinadas, dos seus tempos no Manchester United, estão penduradas atrás da secretária do diretor. Pereira ainda vasculha as suas memórias com alegria.

Ele lembra-se de dar uma palestra à equipa, e olhar para o seu lado e reparar em Ronaldo, aborrecido e impaciente, a fazer malabarismos com uma garrafa de água com os seus pés. Lembra-se das noites em que Ronaldo e o seu amigo José Semedo saltavam o muro e entravam no ginásio para fazer uns improvisados - e estritamente proibidos - treinos de pesos.

A sua memória predileta é, no entanto, aquela que envolve um semáforo na Praça do Marquês de Pombal. "Foi perto do sítio onde os jogadores mais novos costumavam viver," disse Pereira numa entrevista na sexta-feira. "Ronaldo ia para o semáforo. Havia uma estrada inclinada logo ao lado. Ronaldo atava pesos às suas pernas, e esperava que o sinal passasse para verde. Depois ele fazia corridas contra os carros pela estrada acima."

No escritório de Pereira, na Academia do Sporting em Alcochete, está pendurado um quadro que contém fotografias de jogadores com quem trabalhou ao longo dos anos

Mas se Ronaldo pode ter um destaque significativo aqui, não é o único jogador cuja fotografia está presente nas paredes do escritório. Dúzias de outros jogadores estão presentes, também: fotos amarelecidas de Paulo Futre e Luís Figo, imagens mais recentes de Nani e Simão Sabrosa, bem como impressões frescas da vitoriosa equipa portuguesa no Euro 2016, a maioria dos jogadores a cores, e um punhado em tons de cinzento.

Todos no Sporting sabem o motivo, também: dos 14 jogadores que Portugal usou na final contra França, 10 são "made in Sporting".

Ronaldo é o maior achado de Aurélio Pereira, mas está longe de ser o único. Alcochete, como é conhecida a Academia do Sporting, é considerada, pelo International Center for Sports Studies, como uma academia mais produtiva que as do Barcelona, Real Madrid e Manchester United.

O escritório de Pereira também tem outras relíquias como, da esquerda para a direita, a camisola de Ronaldo do Manchester United, a camisola de Nani do Manchester United, e a camisola de Ronaldo do Real Madrid.

Numa métrica, apenas três clubes (Ajax, Partizan Belgrado e Dinamo Zagreb) têm mais jogadores formados a alinhar nos principais escalões de futebol na Europa que o Sporting. A história de como Ronaldo foi para Lisboa pode ser contada como um conto de fadas, mas lê-se melhor como um case study daquilo que, exatamente, faz o Sporting distinguir-se.

"Não temos quaisquer segredos," disse Virgílio Lopes, o diretor da Academia. Os seus atos sustentam as suas palavras: clubes de todo o mundo visitam regularmente o Sporting para descobrir o que está por trás da sua taxa de sucesso. São recebidos por Lopes, Pereira e Luís Martins, o coordenador técnico de Alcochete.

"Dizemos-lhes tudo o que podemos," disse Virgílio Lopes. "Bem, nós dizemos-lhes quase tudo o que podemos."

Detalham, por exemplo, a atmosfera que tentam criar: jogadores com liberdade, não enjaulados, segundo uma analogia de criação de frangos de Aurélio Pereira. "Eles são jovens que jogam futebol; não são apenas pequenos futebolistas,", acrescentou Lopes. "Não queremos que sejam profissionais aos 14 anos. Queremos que ainda sejam profissionais aos 29."

Jogadores começam, a juntar-se para uma sessão de treino na Academia do Sporting em Alcochete.

Eles dizem-lhes para se manterem fiéis ao que fazem, ao que sempre fizeram, em vez de mudarem. E também mostram os seus modelos de treino, explicando como tudo é adaptado ao indivíduo. "Identificamos os pontos fortes e fracos de cada jogador", disse Martins. "Cada jogador necessita de coisas diferentes, por isso mudamos os planos de treino para refletir isso."

Isso aplica-se ao ginásio, onde cada jogador tem um plano físico, e no campo. "Se um jogador está a ter dificuldades em fazer bons passes, nós alteramos o seu treino," disse Martins. Os técnicos do Sporting também incorporam elementos menos tradicionais. "Jogamos futebol-squash e foot-vólei usando as paredes," disse Martins. "Ajuda-os com a tomada de decisão."

Não existe um template ao estilo do Barcelona para um determinado sistema ou forma de jogar. "Não achamos isso importante," disse Martins. "As coisas vão ficando mais complexas à medida que crescem. Necessitam de saber jogar em diferentes cenários porque é isso o que os profissionais têm de fazer."

Há apenas uma coisa que eles não contam aos seus visitantes, a coisa que toda a gente no clube identifica como a sua principal vantagem, a sua maior arma. "O recrutamento é o primeiro passo," disse Martins. E ninguém, como ele sabe, é melhor no recrutamento do que o Sporting, tal como a parábola de Cristiano Ronaldo demonstra, porque ninguém mais pode telefonar a Pereira.

Um veterano há 50 anos no Sporting - como jogador, treinador e agora olheiro - Pereira foi o homem responsável por criar o departamento de recrutamento jovem do clube, em 1987. Construiu uma base de dados com os mais talentosos jovens jogadores em Portugal, ao escrever a cada um dos sócios do Sporting no país, todos os 96.000, e pedindo-lhes para recomendarem talentos existentes na sua zona.

Uma vez reunidas as respostas, começou por tentar obter mais informação. "Falei com treinadores, árbitros, bombeiros, polícias, sobre os mais promissores," disse. "Trouxemos os melhores a Lisboa para treinar. Foi assim que nos tornámos o primeiro clube do país a organizar scouting de jovens a um nível nacional."

Também tem a ver, claro, com a construção de uma rede tão fiável que, ao ouvir falar de um prometedor jovem de 12 anos de uma ilha mais próxima da costa africana do que de Lisboa, o presidente de um núcleo pôde escrever ao quartel-general aconselhando-os que o observassem. Tem a ver com a forma como apurou a identificação de jogadores, que permitiu que um olheiro nem precisasse de o ver jogar para perceber que valia a pena acompanhá-lo. E tem a ver como construiu um sistema que descobriu não só Ronaldo, mas todos aqueles que o antecederam, e todos aqueles que continuaram a aparecer depois.