sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Fantasy journalism

As fantasy leagues (ou ligas virtuais) são um fenómeno cada vez mais popular entre os adeptos de vários desportos. O formato mais normal neste tipo de passatempos é bastante simples: cada pessoa dirige uma equipa e tem um orçamento para a formar, escolhendo um conjunto de jogadores que, ao longo da época, lhe irão dando pontos em função do seu rendimento nos jogos reais. O critério de escolha que cada pessoa segue costuma andar à volta das suas preferências pessoais (normalmente todos fazemos questão em incluir alguns jogadores da nossa equipa preferida) e da perceção dos pontos que cada jogador poderá dar ao longo da competição. Tudo isto, sempre dentro das limitações que os orçamentos impõem - nunca ninguém fica com todos os jogadores que escolheria caso não existisse qualquer restrição.

No jornalismo desportivo, e em particular no que diz respeito aos editoriais da nossa imprensa escrita, passa-se um fenómeno semelhante: quando escrevem, muitos diretores/subdiretores/adjuntos parecem limitados por determinados critérios à boa maneira das fantasy leagues, e não abordam todos os temas que deviam merecer a sua atenção - preferindo restringir-se a um sub-universo da realidade que coincide com os assuntos que não colocam em causa as suas crenças pessoais. Tudo aquilo que for demasiado delicado, é como se não existisse. É uma espécie de fantasy journalism à portuguesa.

Vem isto a propósito dos editoriais que Vítor Serpa e Nuno Farinha escreveram ontem n' A Bola e Record, no dia seguinte ao rebentamento do caso Piriquito:



Duas abordagens diferentes. Serpa foi direto ao tema do momento, mas, de forma relativamente habilidosa, dirigiu-o para onde mais lhe interessava: que os emails poderão não servir de prova; que os emails envolvem figuras menores e figuras mais representativas da administração; e que os responsáveis pelas ações condenáveis são gente pouco recomendável com quem a administração do Benfica não devia conviver nem deixar agir em seu nome.

Tudo isto é um enorme understatement. Primeiro, os emails poderão não servir de prova... mas também podem servir. Neste momento isso é irrelevante para a análise que deveria ser feita à atualidade. Segundo, o caso não envolve apenas figuras menores (suponho que se refira a Pedro Guerra) e figuras mais representativas da administração (suponho que se refira a Paulo Gonçalves): já mete administradores, como Domingos Soares Oliveira, e o próprio presidente Luís Filipe Vieira. Terceiro, a gente pouco recomendável a que Serpa alude é, quer queira, quer não, gente colocada pelas altas patentes do Benfica, de forma inteiramente consciente, para fazer precisamente o tipo de tarefas que os emails revelaram. Isso faz com que a administração e presidente sejam tão pouco recomendáveis como os indivíduos que contrataram para agir em seu nome.

Mas olhar para o editorial de Nuno Farinha é um exercício ainda mais fantasioso. Farinha não só ignora por completo a questão Piriquito e os emails que a levantaram, como tem a distinta lata de falar na redução da suspensão de Nuno Saraiva e do juiz que é adepto do Sporting e daqueles que usa cachecol e publica fotos no Facebook. No dia seguinte à demissão de um membro do Conselho Fiscal da FPF e do anúncio da federação de que vai entregar o caso à PJ, Nuno Farinha acordou repentinamente para o fenómeno do papel dos diretores de comunicação. Para piorar, usa como exemplo benfiquista um esclarecimento sobre uma falha no sistema de videovigilância da Luz - repito, no dia em que rebentou o caso Piriquito e em que houve uma exigência de demissão do Benfica de um juiz que nada fez de errado, Farinha escolheu dar como exemplo um esclarecimento sobre uma falha no sistema de videovigilância. Carlos Janela, ao ler tais argumentos, deve ter aproveitado para tirar notas para distribuir pela sua lista de contactos. Isto é o fantasy journalism elevado ao seu mais alto expoente.

A abordagem habilidosa de um e a abordagem descarada de outro têm, no entanto, uma coisa em comum: nenhum dos dois jornalistas aproveitou o seu espaço de opinião - que tanta vez é usado como local de critica cerrada ao Sporting e, em especial, a Bruno de Carvalho - para aquilo que, neste caso, seria o ponto essencial da análise ao que se passou no dia anterior: repudiar, de forma clara, as ações de Horácio Piriquito e do clube que dá guarida a Pedro Guerra. 

Para pessoas que se dizem tão preocupadas com o futebol português, é estranho que não o tenham feito. Infelizmente, já todos percebemos que as regras do fantasy journalism não são as mesmas que se usam no jornalismo sério.